domingo, 10 de abril de 2011

O Galo de Tróia

     A menina que nasceu no meio do mundo era ainda criança, quando sua tia Clotilde olhou para as mãos de longos dedos da pequena, que a ajudava a atirar milho as aves no quintal, e vaticinou : ela seria pianista ou jornalista.
      Nascida no meio do mundo, na latitude zero da Linha do Equador, a menina vivia em uma casa com muitas aves criadas soltas no terreiro, poucos livros na estante e nenhum piano na sala. Sem nenhuma vocação para criar galinhas, ela optou pelo estudo da Comunicação Social, imaginando seus dias de redatora, diante de uma máquina datilográfica. Computador? Em sua infância ainda era objeto de ficção científica.
     O que ela não imaginou foi que, mesmo não sendo jornalista, traçaria uma trajetória próxima ao metiê e um dia estaria trabalhando - e vivendo situações inusitadas - como pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
A Embrapa comemora 35 anos de atividades, a menina , há 19 anos faz parte dessa história. Mas, sua ligação com a empresa vem de muito antes. Começou há 27 anos, quando ainda estudante universitária e estagiária da Fundação Projeto Rondon, ao ensejo de uma campanha de preservação do pau-brasil (Caesalpinia echinata) , ela foi incumbida de ir até a Embrapa -CPATU em Belém, fazer a entrega e o plantio solene de uma muda da espécie, enviada especialmente de Pernambuco.
     Colaborar para conservação das espécies florestais estava no seu destino. No dia em que a menina, então pesquisadora, estava fazendo a reunião de encerramento de um projeto de organização comunitária para o manejo florestal em um assentamento rural, um episódio a fez recordar o vaticínio de sua tia e desejar que a profecia da infância tivesse recaído na arte de ser pianista.
     No local onde fazia a reunião final, moravam três Marias: do Carmo, Raimunda e Rita, irmãs que sozinhas “tocavam” a propriedade, tipica de agricultura familiar. Depois de assistirem os vídeos com imagens de todas as etapas de trabalho desenvolvido e responderem a uma porção de perguntas, que visavam avaliar o projeto; elas levaram-na a conhecer a barragem que estavam construindo na fundiária. Disfarçando o pavor de levar uma carreira do rebanho bovino, ela aceitou o convite de D. Rita para posar para uma foto, diante das “meninas” que encontraram pelo caminho: “Malhada”, “Branquinha”, “Mimosa” e tantas outras.
     Chegou a hora da despedida. Com a intenção de agradecer o trabalho desenvolvido ao longo de dois anos, as Marias resolveram lhe fazer agrados. Do Carmo, a mais velha e mais séria das três senhoras lhe deu cinco ovos de galinha caipira; Raimunda, trouxe-lhe um saco de farinha de mandioca; já Rita cismou de presenteá-la com um frango: - Pra comer uma galinha caipira no final de semana! Disse-lhe ela, tentando convencê-la e vencer a recusa inicial.
     Ela acabou aceitando o presente, diante da insistência das irmãs e do apoio do motorista, que tratou de arranjar um saco de aniagem, com alguns furos para que o bicho pudesse respirar, e um lugar no porta-malas do carro. Na estrada um pensamento lhe assaltou a mente: em que momento um frango se transforma em galinha caipira? Ela não sabia, tampouco sabia o que iria fazer com aquela ave, até o dia seguinte quando contaria com a cumplicidade da empregada para matá-lo. Ou, para ser politicamente correta: esperava contar com a colaboração da secretaria do lar, para abatê-lo.
     Já na empresa, fez o transbordo do bicho para o porta-malas do seu carro. De início podia ouvir seus ruídos, como se o animal estivesse tentando se libertar, mas depois não ouviu mais nada. Temeu encontrá-lo "mortinho da silva". Mas depois sossegou: se os assaltantes rodam por horas com uma pessoa trancada na mala do carro e ela não morre asfixiada, não haveria de ser um frango que iria morrer!
     Estranhamente, gatos, patos, galinhas e seus pintainhos, sempre provocaram nela mais aversão do que uma barata. Talvez porque barata nenhuma tenha lhe afrontado, como faziam os patos do quintal da sua infância. Isso explica a dificuldade em fazer o desembarque do frango ao chegar em casa. A idéia de ter que pegá-lo, lhe causava arrepios. A filha adolescente, também urbanóide avessa a bichos, logo protestou: - mãe, porque não recusastes? Porque não dissestes que moravas em apartamento? Inquiriu a filha, sem saber que o caipirão, não fora dado para cria, mas para o almoço do final de semana.
     O bicho foi solto no canteiro de um amplo quintal, 600 m² de terreno, com muitas árvores. Ele fez um alarido, assanhando cachorros e galos da vizinhança. Sem nenhuma experiência como adestradora de galinha caipira, ou melhor, de frango, que na verdade mais parecia ser um galo; ela ficou a observá-lo, esperando que ele escolhesse o galho de uma das árvores para se empoleirar. Mas, depois de muito rodar pelo quintal e até ensaiar um vôo, saltando o muro, rumo à casa vizinha, o bicho foi se aquietar justo sobre o balcão da pia da área da churrasqueira.
     - Ah, não! aí não ! Protestou o marido, que desde o início rejeitara veementemente a presença da ave no quintal. Para ele a solução mais prática seria abrir o portão e deixar o bicho correr para rua. Mas ela não teve coragem, seria menosprezar o presente dado com tanto carinho e insistência. Posto pra correr, finalmente o bicho foi sossegar no canteiro.
     No dia seguinte, a empregada não veio. O frango, que pelo cantar da madrugada, ela passou a ter certeza de que era um galo, reinou absoluto no quintal. Sem milho para comer, ele avançou sobre as flores da pitombeira em crescimento, para desespero do dono da casa. Caiu a noite . Lá estava o bicho de volta ao balcão da pia, para sua segunda noite de sono. Quando viu a cena , ela ainda tentou ser gentil, chamou-o pelo primeiro nome que lhe ocorreu batizá-lo: - Odorico, vá dormir no canteiro!, sob o protesto da filha: - mãe, não invente de dar nome pra esse bicho, que pega amizade!
     Mais tarde, quando foi fazer mais uma vistoria, encontrou-o empoleirado em cima do carro, recém adquirido. Foi a vez dela protestar: - Ah! Não Odorico, aí não! Ele desceu rapidamente , não de um pulo só, como ela gostaria, mas percorrendo de um lado ao outro do teto do carro, deixando a lataria toda riscada. Ela decidiu: seja frango, galo ou galinha caipira, “... tantas fez o moço” que vai pra panela!
Na segunda-feira, Odete, a empregada, perguntou: - faço assado ou à cabidela?
E a outrora menina do meio do mundo, arrependidíssima de ter aceito o presente de grego ofertado pelas irmãs Maria, entregou os pontos:
- Faça como quiser, não me importa, pois, sinto que não vou comê-lo, já peguei amizade!
Conto de minha autoria, finalista do V Festival Arte & Cidadania, Embrapa, 2008. 

Um comentário:

  1. Uma caldeirada de frango caipira, com chicória e cebolinha é tudodibom. Será que vc. realmente dispensou esta iguaria em nome da amizade? Espero que a cozinheira não o tenha preparado assado, pois aí seria um sacrilégio.
    Lembro do gostoso sabor das galinhas caipiras,com pirão escaldado, que fazia parte da dieta da mamãe no período pós parto, e que a gente sempre dava um jeito de filar um pouco do prato dela. Agora eu pergunto, será que nós tivemos realmente uma infância pobre no aspecto alimentação? Tínhamos no quintal frangos, galinhas, patos e ovos. Na baiúca, tinha sempre leite de gado, verduras, frutas, pão fresquinho. Isto sem falar na donzela, que consumíamos na hora da merenda, acompanhado de q-suco ou garapa. Bjs mana!!

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