Foi numas férias em Macapá, no ano de 2006 , que minha tia Amélia, se tornou diante de meus olhos , um tipo inesquecível. Eu acompanhava mamãe em visita à viúva de meu tio Manoel Borges, cuja virtuose no cavaquinho esta registrada em livro sobre a História do Amapá. Desde que morreu meu tio, ela mora com um filho, nora, netos e bisnetos, convivendo com a pobreza, sujeira e conflitos familiares.
Aos 92 anos, trêmula, caminhava com dificuldade. A casa, há anos em obras, não lhe permite circular com segurança. Não vai sequer ao pátio, pegar sol, ver o movimento da rua. Da mesa de refeições , onde mais conversa do que come, recolhe-se ao seu quartinho e ao seu mundo visto pela televisão, onde acompanha terços , missas, e a novela “Páginas da Vida”, sem entender: - como pode existir uma mulher tão má como a Marta? ( a personagem de Lilia Cabral)
Foto:Divulgação/RedeGlobo |
Em poucos minutos, um mundo de coisas me passou pela mente e pelos olhos, inclusive um rato que cortou caminho pelo quarto.
Do tio lembro-me que era calado e tinha um olhar sempre triste. Já tia Amélia, fala, fala, fala...mas nenhum palavra-lamento sobre sua vida miserenta. Só gratidão às pessoas que lhe querem bem, dentre eles a nora Bel e Ivanildo o filho mais velho. Este, a visita todos os dias, limpa os chinelos dela e, quando insiste muito, consegue levá-la até o pátio.
A nora, que ainda chora a morte do filho que teria 20 anos, se não tivesse sido assassinado há três; lamenta a má-sorte da filha, que vive confinada no quarto, porque o pai não aceitou conviver com sua gravidez de adolescente, nem com a criança que já está com mais de um ano. Este pai é o mesmo marido, que não permitiu que Bel fosse trabalhar fora, mesmo tendo sido aprovada em um concurso público. A pobre lamenta e sonha: - não posso morrer, sem realizar meu sonho de ter uma máquina de costura.
Tia Amélia se emociona com as lembranças do Amapá, dos seus amigos Lulu e Mundinha. Porém, quando me ofereço para levá-la até seus amigos, ela diz: - hoje não, hoje não posso! como se quisesse adiar a realização deste pequeno sonho e assim prolongar a própria vida. Despedimos-nos com ela em prantos, prometi voltar para buscá-la. Tia Amélia voltou para seu quartinho, para o seu “domingão legal” diante da TV.
A noite fui à missa na Igreja Jesus de Nazaré. No início da liturgia, uma senhora franzina, dessas que facilmente chamamos de doida, foi até a frente do altar e depois de fazer mesuras em frente ao Cristo crucificado, começou a falar destrambelhadamente, com gestos de indignação, coisas das quais só captei algumas frases: - o pobre precisa ter uma vida digna!!! Todo pobre é filho de Deus e merece ter “isso e aquilo” outro dizia, enumerando com o indicador da direita nos dedos da outra mão.
De imediato me lembrei de tia Amélia, que talvez não tenha a consciência de que todo pobre merece ter uma vida digna. Lembrei dos governantes que fazem suas promessas enumerando-as nos dedos das mãos. Pensei que, ao nos acomodarmos na “normalidade” deixamos de nos indignar, como a “doida” que subiu ao altar.
Notas:
1- Crônica originalmente publicada em 2007 no site do CorreaNeto
2- Lembrei , que há 6 meses comprei uma máquina de costuras e nunca a usei. Vou ver se Bel ainda está sonhando com uma máquina , a minha será dela!
Boa idéia,querida.Dá uma pena,né?
ResponderExcluirMana, o primo marido da Bel é o típico machista sem causa, pois além de não deixar as mulher trabalhar fora, com a alegação de que "mulher que trabalha fora, mete chifre no marido", não a deixa também desenvolver o dom que ela tem de benzedeira,rezadeira e puxadeira(massagem). Ela atende as pessoas escondido dele, quando ele está pro trabalho.Ele diz: "Se tu ficar alisando perna de macho, o bicho dele vai subir e aí não vai dar certo..." Pobre tipo, pensamento pobre, pobre a vida inteira. Aff!!
ResponderExcluirlindo e emocionante! grata por me proporcionar lágrimas aos olhos ao ler o texto!! tens o dom da escrita! parabéns! ;)
ResponderExcluirOlá Mary, que surpresa encontrar esse teu comentário, neste meu blog tão abandonado. Um acontecimento inesperado me fez fechar as portas deste Blog, mas ainda hei de voltar a exercitar a produção de textos, escrevendo crônicas como esta. obrigada por suas gentis palavras!
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